Semana da Mulher: A série da Netflix “Coisa mais linda” é uma aula sobre o feminismo

Mulher é sexo frágil? A série “Coisa mais linda” (e a vida) dizem o oposto. Com muita bossa nova e carisma, a produção da Netflix conta a história de quatro mulheres que, com o apoio uma da outra, se livram de amarras da sociedade conservadora da década de 1960 e fazem de tudo para serem independentes.

Criada por Heather Roth e Giuliano Cedroni e com direção de Caito Ortiz, a série brasileira conta a história de Maria Luiza (Maria Casadevall), uma mulher paulistana que após ser traída, roubada e abandonada pelo marido, decide realizar seu sonho: construir um clube de música. Sem o apoio do pai rico e por ser mulher, a protagonista enfrenta adversidades para ser independente.

A primeira dificuldade foi a impossibilidade de Maria Luiza conseguir um empréstimo e abrir um estabelecimento como proprietária por ser mulher, para isso, ela precisaria da autorização de um homem. De acordo com o Código Civil Brasileiro vigente até 1962, mulheres casadas não podiam adquirir ou possuir propriedade própria.

Malu roda a baiana e junto de Adélia (Pathy Dejesus), trabalhadora de empregada doméstica do andar de baixo de seu apartamento e sua nova amiga, começam a construir o clube. Ambas com o mesmo sonho, mas com vidas completamente diferentes. Maria Luiza luta pelo seu “direito de trabalhar” enquanto Adélia trabalha desde os oito anos para sustentar a família. A construção da relação faz uma analogia explícita ao recorte racial presente na luta feminista, termo conhecido como interseccionalidade. 

Até 1962, data do Estatuto da Mulher Casada, esta era considerada incapaz de exercer atividades remuneradas, mas isso se aplicava no contexto de mulheres brancas privilegiadas, as mulheres negras sempre se viram obrigadas a trabalhar em subempregos para sustentar a família.

Hoje, pretos e pardos formam 64% dos desempregados e 47% desta mesma população está no mercado informal, segundo a PNAD Contínua de 2019. Pouco mudou, né? E como disse a ativista negra e intelectual atemporal, Lélia Gonzalez: “Tratar da divisão sexual do trabalho sem articulá-la com seu correspondente ao nível racial, é recair em uma espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizado e branco”.

Mesmo com as diferenças e muito suor de Malu e Adélia, o clube ganha vida. A música tenta dar seu primeiro pontapé na estreia do bar com a apresentação de Chico Carvalho (Leandro Lima), mas o cantor, alcoólatra e irresponsável, estraga tudo. A protagonista assume o palco e diz uma frase que se torna o bordão de todas as intervenções musicais no estabelecimento: “quando a vida tem homem envolvido, dá merda!”. O palco ganha a atenção de sua amiga Lígia (Fernanda Vaconcellos), mas seu marido Augusto (Gustavo Vaz), que é candidato a prefeito, não aprova a sua carreira, bate e estupra sua esposa. 

Apenas em 2006 foi sancionada a Lei 11.340, conhecida como “Maria da Penha”, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Por mais, na década de 1980, movimentos feministas pautassem a violência, antes da lei, os homens, histórica e culturalmente, tinham liberdade para agredir suas esposas sem receber punições. 

Lígia sai de casa, foge das agressões e faz um aborto clandestino (outra pauta ainda criminalizada no Brasil). Quando acredita estar livre do casamento e começando a dar sentido a sua vida, sua sogra pede o desquite. O mesmo acontece com Malu quando Pedro (Kiko Bertholini) volta interessado no seu dinheiro e o casamento não retorna. 

Na época, para desfazer um casamento, a mulher era desquitada: reconhecia-se a separação de corpos e bens, mas não a dissolução do matrimônio. Apenas em 1977 a Lei do Divórcio deu aos cônjuges a oportunidade de pôr fim ao casamento e construir uma nova família. 

Thereza (Mel Lisboa) critica fortemente as decisões de Lígia diante do casamento. Ela, entre todas do quarteto, é quem se mostra mais “emancipada”; tem liberdade sexual com o marido Nelson (Alexandre Cioletti) e possui o cargo de editora chefe em uma revista feminina, na qual ela é a única mulher na redação.

Feminicídio, lugar de fala, direitos sexuais, direitos reprodutivos e mulher no mercado de trabalho são outros temas tratados na série. O triste é saber que os direitos privados nos anos 60 mudaram pouco atualmente. E pior, algumas conquistas parecem estar a cada dia mais ameaçadas, e provavelmente estão mesmo, pois a mensagem de Simone de Beauvoir que se adéqua a qualquer tempo é: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.

A série ainda não possui anúncios de uma terceira temporada, mas os fãs astutos compararam a diferença de tempo da primeira para a segunda, e especulam a estreia em setembro deste ano. E aí, você já está animado?