“Então, ali estávamos, com toda a raça humana exterminada, não por bombas atômicas, ou guerra biológica, ou poluição, ou qualquer coisa tão grandiosa. Apenas pela gripe”
O trecho acima poderia ter sido escrito por qualquer ser humano semi-sobrevivente da quarentena que, em alguns lugares do mundo, já completou um ano. No entanto, o excerto foi escrito por Stephen King, há 43 anos.
O conto “Espuma Noturna”, de seu livro de contos, “Sombras da Noite”, fala sobre um grupo de jovens sobreviventes da temida gripe A6. Diante do fim do mundo, eles sobrevivem aos dias em uma praia, bebendo cervejas e se lamentando por tudo que não existe mais.
As coincidências não param por aí. Na história, a gripe se originou no Sudeste Asiático e tinha algumas variantes ativas, como a “Febre de Hong Kong”, ou “A2”. Os sintomas? Dor de cabeça, dor no estômago, dor de garganta e febre forte.
No entanto, King, sendo o mestre do terror que é, completa a doença misteriosa com um inchaço descomunal da cabeça, triângulos arroxeados na boca e, na reta final da infecção, delírios mentais.
O protagonista divaga frequentemente, e, na maioria das vezes, reclama mentalmente de sua companheira do fim do mundo, Susie. Ele a descreve como chorona, irritante, falante, insegura, gorda, carente e solitária. Fica claro para o leitor que ele não a suporta mais. Contudo, Susie age apenas como uma jovem agiria quando não existem mais perspectivas para a raça humana na Terra: desesperada, triste, abalada.
Bemie nos leva a se irritar com a presença de Susie, tamanha insatisfação que ele transparece. Todavia, o protagonista não consegue lidar com o que aconteceu à sua volta, estando em constante negação e fixado em odiar a sua companheira. Nas suas memórias, lembranças de um tempo mais simples e feliz, constantemente regredindo.
A forma com que a pandemia aconteceu não é muito explorada e temos apenas um vislumbre dos horrores pelo trecho: “(…) Isso acontecera quando ainda estávamos na universidade, cerca de uma semana antes de fecharem definitivamente, um mês antes de começarem a transportar cadáveres em caminhões basculantes e enterrá-los em covas comuns com tratores”.
A praia em que frequentam marca o começo e o fim do conto. No início, ele está se dirigindo para lá, após um sacrifício humano para o oculto, a fim de acabar com a gripe letal. Objetivo, raso e niilista, ele passa a descrever o que está acontecendo de forma desapegada, quase desassociada com a realidade: “Depois que o cara estava morto e o cheiro de sua carne queimada sumiu no ar, todos nós voltamos à praia. Corey levou o rádio, um daqueles bagulhos do tamanho de uma maleta, todo transistorizado, que levava umas quarenta pilhas e também gravava e tocava fitas. Corey tinha muita grana antes de A6, mas essas coisas já não importavam”.
No fim, uma memória remetendo ao passado, bem descrita, vívida, e o leitor quase sente o bafo quente que emerge da areia no fim de uma tarde de verão: “As ondas chegando, chegando, chegando. Infinitas. Limpas e profundas. Tínhamos vindo aqui no verão, Maureen e eu, no verão antes de entrarmos para a universidade, antes que a realidade e a A6 viessem do Sudeste Asiático e cobrissem o mundo como uma mortalha; julho comemos pizza e escutamos o rádio de Maureen, eu lhe passara óleo nas costas e ela nas minhas, o ar estava quente, a areia brilhante, o mar como um vidro em chamas”.
A diferença na forma com que o narrador descreve os acontecimentos é clara. Mal lhe resta humanidade para continuar sobrevivendo. Para nós, nos resta a esperança de que não sejamos como Bemie quando (ou se) a pandemia da Covid-19 acabar.